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O MORCEGUISMOS é um espaço inteiramente dedicado aos morcegos e pretende ser um veículo de divulgação e sensibilização. Neste espaço cabe a divulgação de projectos em curso ou concluídos, notícias, e actividades diversas.

Para além disso pretende-se que contribua para uma aproximação do público a este grupo faunístico, e que este público tome parte no aumento do conhecimento sobre morcegos em Portugal, nomeadamente através da informação sobre abrigos de que tenham conhecimento.

No futuro pretende-se ainda criar uma linha de apoio a qualquer assunto relacionado com morcegos, como seja o socorro de morcegos encontrados feridos ou a perturbação de abrigos, entre outros.

Espera-se desta forma dar um contributo importante para a conservação das espécies de morcegos portuguesas.

8 de setembro de 2010

A Amazónia dos morcegos só se ouve no laboratório

Já tinhamos tido o prazer de publicar no Morceguismos um resumo enviado pela Maria João sobre o trabalho que, em conjunto com o João Tiago, foi realizado na bacia do Amazonas e que pode ser consultado aqui. Desta vez fica uma notícia publicada o caderno P2 do Jornal Público no passado dia 2 de Setembro.

A Amazónia dos morcegos só se ouve no laboratório

Seis meses na Amazónia branca e negra não permitiram desenhar o perfil completo da comunidade de morcegos. O nosso ouvido é cego com estes animais, é preciso gravar os sons que emitem para identificá-los mais tarde, no laboratório.

Ouvir o Cormura brevistoris é ouvir um "dó-ré-mi". O pulso emitido pelo morcego soa a um "tu-tu-tu"cada vez mais agudo. Depois do "mi", o mamífero alado lança uma nova sequência estridente. "Dó-ré-mi, tu-tu-tu." Entretanto, algures no meio da floresta, uns quantos insectos foram sendo apanhados com a ajuda deste trinado, que serve ao morcego como nos serve a nós a visão.

Foram. Porque o que estamos a ouvir é uma gravação. Em diferido, reformulada para o ouvido humano, que é limitado na sua capacidade auditiva e por isso lhe escapou, durante séculos, o maravilhoso mundo dos sons dos morcegos.

Estamos sentados numa cadeira de um laboratório da Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa (FCUL) com um portátil à frente e um programa que mostra sonogramas - gráficos com a representação da frequência, intensidade e duração de sequências de sons. "O pico de intensidade do pulso vê-se pelo sonograma que é mais amarelo e mais forte", explica ao P2 a investigadora Maria João Pereira.

Em 2007, a especialista em morcegos, que está a terminar o doutoramento, esteve duas temporadas de três meses cada no estado da Amazónia, no Brasil, a estudar a comunidade de morcegos na região central da floresta tropical, juntamente com João Tiago Marques. Inicialmente, apenas estava prevista a captura de morcegos em redes colocadas a diferentes alturas, para a inventariação das espécies. Com a determinação da quantidade de indivíduose de dados como a altura, o peso ou as fêmeas grávidas. Mas a leitura prévia de artigos mostrou aos dois investigadores que isso era insuficiente.

"A comunidade não fica completamente amostrada só com as redes, é preciso a amostragem dos ultra-sons", explica Maria João. Os ultra-sons são por exemplo o "tu-tu-tu" do Cormura brevistoris.

Os morcegos estão activos à noite e não se servem da visão para caçar, para isso utilizam a ecolocação. Emitem sons que se propagam pelo ar, embatem em objectos como insectos ou árvores, e retornam. Os mamíferos recebem a informação das ondas sonoras através de um sonar e constroem uma imagem tridimensional do mundo, o que lhes permite caçar uma borboleta ou desviarem-se das redes colocadas pelos cientistas.

Enquanto voam, estão continuamente nesta actividade. Como emitem sons muito agudos, em frequências superiores a 20 quilohertz, o ouvido humano não é capaz de os escutar. São os ultra-sons.

"Os morcegos insectívoros conseguem detectar muito bem as redes que utilizámos para apanhar os frugívoros [morcegos que se alimentam de fruta], por isso temos que utilizar os ultra-sons", acrescenta João Tiago, que também está a terminar o doutoramento. A meio do projecto os investigadores conseguiram adquirir gravadores de ultra-sons e durante os últimos três meses de 2007, enquanto andavam a contar os morcegos que caíam nas redes, os gravadores captavam as ecolocações destes mamíferos.

Em Portugal, fizeram a triagem das gravações e ficaram com alguns milhares de horas de "piiuus", "dó-ré-mis" ou "tus". Falta ouvir metade das horas para concluir o projecto. Os investigadores chegam a ouvir 500 gravações por dia, cada uma com cerca de 20 segundos.

Há espécies que já conseguem identificar facilmente, mas noutras só ficam com o género ou a família do morcego, uma informação muito menos específica. "Encontrar um morcego com um detector de ultra-sons é como sintonizar um rádio, dizemos que a TSF está nos 89,5 e a Radar está nos 97,8. Portanto o morcego é exactamente isso, nós andamos à procura dessas frequências", exemplifica Maria João.

Reconhecer o Cormura brevistoris é de caras, caracterizá-lo é mais difícil. "Há três frequências de pico, por isso é que temos este som "tip-tip-tip"", diz João Tiago. Estas frequências são de 25,8, 31 e 34 quilohertz: "Estão espaçados à mesma distância, por isso é que parecem três notas." A duração do pulso, neste caso a duração do "dó-ré-mi", é de 11,4 milissegundos, outro dado importante para a caracterização do som.

Na floresta, os gravadores eram activados pelos silvos dos mamíferos e por outras criaturas que também utilizam as mesmas frequências. Durante 1,7 segundos o aparelho registava os sons, depois parava até ao próximo encontro imediato.

Água clara, água escura

Muitas vezes ouve-se mais do que um morcego na mesma gravação. O Cormura, por exemplo, está sozinho, os outros ruídos ultra-sónicos que se ouvem podem ser de insectos ou aves. "É como os ultravioletas e os infravermelhos na luz, quando começámos a dominar [este conhecimento] foi um outro mundo. Aqui é a mesma coisa, há uma série de espécies que comunicam noutras frequências", explica o investigador.

O projecto foi liderado por Jorge Palmeirim da FCUL e Pedro Beja da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e centrou-se na região que fica a este de Manaus, a capital do estado do Amazonas, na reserva do Amanã, entre o lago de Amanã, a norte, e o rio Japuerá, a sul.

Esta região é única porque é influenciada por dois sistemas de água opostos. O lago Amanã é alimentado por água preta, proveniente das chuvas que caem na floresta em solos pobres em nutrientes, e o rio Japuerá é alimentado pela água branca, que tem uma cor barrenta, vem do degelo dos Andes e da erosão das encostas e é rica em nutrientes. Estes dois sistemas de água, que têm, cada um deles, um curso principal - o rio Solimões, a sul, e o rio Negro, a norte -, encontram-se em Manaus, dando origem ao rio Amazonas. Nas fotografias vê-se o contraste da cor dos dois rios.

Todos os anos, entre Abril e Junho, os cursos de água sobem e cobrem vários quilómetros quadrados de floresta. As zonas submersas por água preta, pobres em nutrientes, são os igapós. As que ficam preenchidas por água branca, rica em elementos, chamam-se várzeas. O interesse do projecto é compreender o impacto deste sistema nos morcegos.

"A pergunta que fizemos é se a diferença de nutrientes entre as águas tinha influência na comunidade", explica Maria João. No terreno fizeram percursos em zonas de igapó, várzea e terra firme, que nunca são inundadas, e fizeram contagens na altura das cheias e posteriormente, quando os terrenos já não estavam alagados. De dia contavam as árvores de fruto existentes em cada percurso, à noite contavam os morcegos que caíam nas redes.

"O que é interessante nos morcegos é que a comunidade trabalha do ponto de vista tridimensional", diz a investigadora, referindo-se à mudança das espécies, do solo até à copa das árvores, que ocupam nichos ecológicos diferentes. Para Maria João estes mamíferos são também bons modelos ecológicos pela sua diversidade - alimentam-se de insectos, pólen, néctar, frutos, animais ou sangue. "Na Amazónia temos morcegos que comem tudo, é um laboratório vivo perfeito para testar teorias ecológicas."

Com os animais capturados os investigadores concluíram que na terra firme existe mais diversidade de espécies, principalmente por haver um estrato no chão que nunca é inundado e suporta um ecossistema complexo. Mas na várzea a abundância é maior: há mais plantas, mais frutos, cada espécie tem mais indivíduos. "Na orla da terra firme ouve-se um morcego por gravação, na várzea ouvem-se três morcegos", exemplifica João Tiago. Os investigadores defendem que se os morcegos, que nem sequer estão directamente dependentes do solo, são afectados pela subida anual das águas, então toda a comunidade vai ser influenciada por este regime.

Ao todo, contaram 60 espécies diferentes e conseguiram perceber as que prevaleciam em cada região. As principais conclusões foram publicadas no ano passado no Journal of Animal Ecology. Depois de estudadas as gravações perceberam que o número de espécies era maior. "Adicionámos 15 espécies de morcegos que não capturámos com rede", refere Maria João. Eptesicus furinalis, Lasiurus ega, Promops centralis, Saccopteryx cannescens, Peropteryx kapleri, Diclidurus scutatus, Diclidurus ingens, são alguns deles.

Alguns, como o Cormura brevistoris, já tinham sido capturados nas redes. Outros, como o pescador Noctilio leporinus,não foram surpresa. "Viamo-lo a caçar na água mas, como não havia redes ali, não o conseguíamos apanhar", explica o cientista.

O Eptesicus brasiliensis é outro morcego que só apareceu nas gravações, e que se ouve agora no meio de outros dois guinchos que aparecem no sonograma. João Tiago diz que não vai ser possível destrinçar os outros dois morcegos e faz só a medição do Eptesicus. "A frequência de máxima energia é de 32,7 quilohertz", diz o cientista. É o guincho mais forte, que se repete num "ptriu"estridente.

Já encontraram espécies novas para a ciência? "É possível que sim, mas nunca vamos saber porque não trouxemos amostras", diz Maria João. O Brasil não permite a saída de amostras, o que impede a prova genética de espécies novas.

Os resultados mostram a riqueza da região. "A Guiana é considerada a região mais diversa de morcegos do mundo, tem 82 espécies", diz a cientista. Aqui já vão em 75, mas a Amazónia que ainda está por ouvir nas gravações pode aumentar o número.

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